O tema do artigo de hoje é uma pequena homenagem, com máximo respeito e
com a gravidade que o momento exige, às vítimas que morreram de forma tão banal
em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, uma região e um estado em que morei e
aprendi a respeitar.
Sobre o
futuro da natureza humana
Tempos
difíceis enfrenta o direito à vida. De fato, anda bem desprestigiado no mundo
contemporâneo e, mais ainda, no Brasil.
Quando Jürgen Habermas, no seu livro O futuro da
natureza humana, considerou importante opinar sobre o debate
filosófico em torno do manuseio da pesquisa e da engenharia genética
e sobre o status moral da vida pré-humana,
confesso que mesmo eu achei algo exagerada a sua preocupação com a
possibilidade de que as gerações futuras pudessem censurar seus pais por
preferir beneficiá-las com melhorias genéticas ao invés de respeitarem
filigranas morais.
Ora, pensava eu, como alguém no futuro poderá preferir que seus pais
tivessem optado, por assim dizer, por eventuais “defeitos humanos genéticos” em
lugar da “perfeição genética da tecnologia”? Quem, com efeito, preferiria
nascer com problemas genéticos ou de saúde, se a pesquisa genética lhe
propiciasse “a perfeição”? Ou dizendo de um jeito mais palatável: quem,
perguntava eu, censuraria um pai por preferir que os seus filhos pudessem
usufluir ao máximo das melhorias que a ciência lhes pudesse oferecer?
Supreendentemente, contudo, era essa a perspectiva do grande pensador
alemão — assumir que, no plano da eticidade, nem tudo que a ciência e a
tecnologia nos oferecem é justo e correto aceitar. Em referência ao pequeno
grande livro de Habermas, lembra Murilo Mariano Vilaça, “A seleção artificial
do ser humano é completamente descartada (...), pois afrontaria, entre outras
coisas, a autocompreensão ética da espécie, a autonomia e
a autenticidade dos humanos, o que comprometeria a sua
dignidade”.
Pois bem! Nem bem digerira a rara discordância com o grande filósofo de
nossos tempos, e a realidade me reconduzia humilde ao meu lugar, trazendo à
lembrança a conhecida advertência do velho Hegel nos seus Fundamentos
de filosofia do Direito: a coruja do saber só levanta voo ao entardecer,
ou, na sua forma original e mais poética: “A coruja de Minerva inicia o
seu voo apenas quando cai o crepúsculo.” E para simplificar, em
termos absolutamente mundanos: filosofia não é coisa para iniciantes.
Foi divulgado, neste final de semana, no Brasil e em Portugal (clique aqui para ler), o voto dissidente de
um magistrado português, que, suportado em bons fundamentos, entendeu legítimo
afirmar o direito à “não-existência”. Cuidava de justificar o suposto direito
de um recém-nascido a receber reparação pecuniária por danos morais em razão de
— podem acreditar — “ter nascido”. O laboratório requerido, que não
identificara algumas “deficiências” genéticas da criança, deveria indenizar,
além da mãe (que já fora indenizada), a própria criança por ter nascido,
já que o seu erro de prognóstico, em não identificar as mazelas congênitas de
que padeceria, impediu a mãe de interromper — “em benefício da criança” — a
gravidez.
Em outras palavras, o insigne magistrado, mais de dois mil anos depois,
parece dar razão, pelo menos em alguma medida, aos espartanos, que arremessavam
ao precipício as crianças “não dignas de viver”, ou seja, as crianças que
nascessem com defeitos congênitos.
Insisto, em homenagem ao magistrado, que o caso era mesmo trágico. De
fato, segundo a ConJur, cuidava-se no acórdão do “caso de um bebê
que nasceu sem braços e com várias outras deformações, que o impedem para
sempre de ter uma vida independente e normal”. Lembro também que a mãe já fora
indenizada pelo erro do laboratório. Portanto, no caso, cuidava-se estritamente
de “danos não patrimoniais” à criança pelo fato mesmo de ter nascido.
Segundo o respeitado magistrado, “não é possível deixar para o tempo da
capacidade do filho um direito que só existe enquanto o filho é ainda feto.
Alguém tem que ter a capacidade do exercício do direito no tempo em que o
direito pode ser vivido”. Mas a pergunta, absolutamente constrangedora em
termos morais, é a seguinte: Será mesmo que aquela criança, já agora com “o
tempo da capacidade”, podendo, portanto, decidir conscientemente, entenderá que
preferiria não ter nascido? Para que ninguém me exija uma resposta, defendo-me
com Weber, para quem a ciência não era nem para os profetas nem para os
adivinhos.
Sobre o
conteúdo do direito à vida
Se
devemos — como não-profetas — calar sobre o futuro, podemos falar sobre o
passado. Pelo menos em termos jurídicos, o sentimento é de que o direito à vida
já teve dias melhores. Certamente disputava o seu espaço com um número menor de
bens que a sociedade e a Constituição entendiam merecer proteção. Aliás, já
Thomas Hobbes, além de um conjunto de jusnaturalistas, considerava a proteção
da vida um dos fins essenciais do Estado. Hoje, apesar de ser sempre referido,
de teoria acadêmica a sermão de nossos religiosos, na prática, ninguém lhe dá a
mesma importância de outros direitos fundamentais, como é o caso do direito à
liberdade, ou do direito à igualdade ou da dignidade da pessoa humana, para
ficar nos exemplos conhecidos.
E não obstante o desprezo diante dos outros direitos, como lembra meu querido
amigo e admirado professor Ingo Sarlet, a vida é, no mínimo, o substrato
fisiológico da dignidade da pessoa humana, e toda vida humana — ainda que já
extinta ou por nascer — é digna de sua existência e de ser respeitada. De outro
lado, não há como falar em liberdade ou igualdade onde não haja vida. De fato,
não se pode ser igual nem livre se não se vive. Portanto, só na corrupção mais
ingênua de nossos tempos, é que conseguimos submeter a vida humana, sem mais e
indistintamente, ao império de outros valores. Infelizmente, ainda que se negue
em teoria, é essa a retórica que nós brasileiros preferimos com a prática de nossos
atos.
A prova cabal da desimportância do direito à vida é que o Brasil se
transformou numa grande carnificina sem que ninguém tenha protestado
seriamente. O primeiro significado jurídico do direito à vida é, entretanto, a
proibição de matar. Mas aqui mata-se a granel, sem motivo ou por motivo torpe,
por incompetência ou por desídia, por ódio e até mesmo, dizem, por amor. Todos
os dias assistimos às mais depravadas demonstrações de violência contra a vida
humana sem que parta da comunidade (indivíduos, sociedade ou Estado) a mesma
indignação que aquela manifestada em casos de violação ao meio ambiente, aos
direitos dos animais, à liberdade de expressão, à moralidade administrativa, à
liberdade ou à igualdade entre as pessoas.
Todos esses direitos, obviamente, são merecedores da máxima proteção.
Mas não deixa de ser irônico que eles encontrem tantos e tão qualificados
defensores, enquanto o direito à vida tenha que ser protegido apenas com a
retórica de autoridades policiais ou com apelos religiosos.
A tragédia ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que justamente
mobilizou mentes e corações, é apenas, contudo, mais uma demonstração das
consequências nefastas que o absoluto desrespeito à vida humana provoca em
nosso país. Infelizmente, muito embora em forma condensada, arrisco a dizer,
contudo, que aquelas duas centenas de jovens mortos pela irresponsabilidade
nacional com a vida humana não conseguirão impor um ponto final em nossa
mortandade cotidiana. O altar da tragédia em que as vidas desses jovens foram
oferecidas em holocausto ao desprezo nacional com a vida é obra de muitos anos
e não acaba aqui. Não é tarefa de amadores e exige tempo e persistência.
Além de um desfalecimento moral absoluto dos valores básicos que devem
governar qualquer sociedade, a começar pelo mais simples “respeita o teu
próximo como a ti mesmo”, exige-se para o que aqui presenciamos uma
extraordinária determinação e preparo para desvencilhar-se de responsabilidades
e obrigações, além de estar disposto e vigilante para, cotidianamente, negar-se
a ver as nossas mazelas. Como dizia o velho Machado de Assis, para forjar o
caráter da esperteza nacional, do nosso admirado medalhão (o “esperto
nacional”), exige-se tanto esforço como perspectiva. Definitivamente, não é
tarefa de iniciantes.
Na verdade, se bem observado, aqueles jovens não morreram naquela
madrugada. Eles, como milhões de brasileiros, vêm sendo assassinados há muito
tempo e continuarão a ser mortos enquanto não tomarmos a sério a vida humana.
Começa por aceitarmos cada um a nossa responsabilidade. A epidemia moral
que vivemos não é um problema que se possa curar buscando culpados no “outro”,
o que invariavelmente, para mantermos a nossa cordialidade, acaba sempre
chegando ao Estado, bode expiatório sempre à mão para um sem-número de
problemas que só podem nascer e subsistir quando a sociedade como todo e cada
um de nós — como indivíduos — consentimos com eles. O Estado tem
responsabilidades nisso tudo, é óbvio, mas é um caminho que não começa nem
acaba nele. Enquanto não aceitarmos nossa responsabilidade como sociedade e
como indivíduos, não vejo por que ter esperanças.
Nós juristas, por exemplo, termos que retomar o bom caminho — aquele em
que o Direito existe para servir à vida e ao ser humano, e não o contrário. É
de se sentir saudade, por exemplo, de uma época em que os grandes do Direito
Penal lembravam, por exemplo, de um Nelson Hungria, a insistir que “todos os
direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro
dos bens é o bem da vida”.
Néviton Guedes é
desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade
de Coimbra.
http://www.conjur.com.br/2013-jan-28/constituicao-poder-nao-impede-morte-desprezando-direito-vida
http://www.conjur.com.br/2013-jan-28/constituicao-poder-nao-impede-morte-desprezando-direito-vida